quinta-feira, 24 de novembro de 2011

O Diario de Anne Frank- Parte 14

Quinta-feira, 26 de Outubro de 1942
Querida Kitty:
Estou aflita! O pai está doente. Tem muita temperatura
e manchas vermelhas pelo corpo, como acontece quando
se tem o sarampo. A mãe anda a tratá-lo e tem muito
cuidado para que ele transpire muito, porque assim talvez
a temperatura desça.
Hoje de manhã a Miep contou-nos que a casa dos
van Daans foi toda despejada pelos alemães. Ainda não
dissemos nada à sra. van Daan. Está muito nervosa ùltimamente
e não temos empenho nenhum em ouvir-lhe falar outra vez, durante horas, do seu lindo serviço
de porcelana e das mobílias valiosas que tinha em casa.
Também nós tivemos de abandonar tantas coisas bonitas!
E nada adiantamos com lamentações.
Já me deixam ler, de vez em quando, livros para adultos
e agora estou a ler A juventude de Eva de Nico van
Suchtelen. Não encontro grande diferença entre este livro
e a literatura para raparigas. Bem sei que neste livro
se fala de mulheres que vendem o corpo a homens estranhos
para ganhar um ror de dinheiro. Eu morreria
de vergonha! Também se conta que a Eva começou a
ter o "incómodo". Gostava de começar a ter o "incómodo"
É que isto dá-nos importância.
O pai foi buscar ao armário os dramas de Goethe e
de Schiller. Vai lê-los agora todas as noites em voz alta.
Começámos com Don Carlos. Para seguir o bom exemplo
do pai, a mãe entregou-me o seu livro de rezas. Eu não
quis ser indelicada e li umas páginas. Acho o livro bonito,
mas aquilo não me diz nada. Porque é que a mãe quer
que eu seja religiosa à força?
Amanhã acende-se o fogão pela primeira vez. calculo
o fumo que vai fazer, porque há muito tempo que não se
limpa a chaminé.
Tua Anne.

Sábado, 7 de Novembro de 1942
Querida Kitty:
A mãe está muito nervosa e isto é para mim como que
um perigoso escolho. Porque sou sempre eu quem paga as
favas.
Por exemplo, ontem, à noite : A Margot estava a ler um
livro com lindas ilustrações. Foi para cima e deixou ficar
o livro para quando voltasse. Comtinuá-lo-ia, então, a
lê-lo
não tinha nada de especial a fazer, peguei no livro
e pus-me a ver as gravuras. A Margot voltou, viu o "seu" livro
nas minhas mãos e franziu a testa. Queria-o outra vez. Eu
estava com vontade de o ver mais um bocadinho, mas a
Margot ficou zangada. Então a mãe disse :
-Era a Margot quem estava a ler áb á do quehse
Nesse momento entrou o pai. Nada se
tinha passado, mas pensou logo que quem tinha razão
era a Margot e disse para mim:
-Gostava de te ver, a ti, se a Margot folheasse um
livro teu.
Cedi imediatamente e pousei o livro. Então disseram
que eu fiquei ofendida. Mas eu não me sentia ofendida
nem zangada, apenas estava triste, muito triste.
O pai foi injusto, não devia julgar o caso sem o conhecer.
Eu teria devolvido o livro à Margot, de livre vontade
e muito mais depressa, se os pais não se tivessem metido
no assunto e tomado logo partido por ela. Enfim, que a
mãe se ponha do lado da Margot, é coisa natural. Morrem
uma pela outra. Já estou tão habituada que não me importo
com as descomposturas da mãe nem com o mau génio da
Margot. Sou amiga delas porque uma é minha mãe e a
outra minha irmã. Mas com o pai a coisa é diferente.
Quando ele dá preferência à Margot, quando acha bem tudo o que ela faz e lhe dá mimos, então
roo-me toda
por dentro, pois o pai é tudo para mim! É o meu ideal,
e amo-o como não amo a mais ninguém neste mundo.
Bem sei que ele nem se apercebe de que trata a Margot
de maneira diferente. Também não se pode negar que
a Margot é mais inteligente, mais bonita e melhor. Mas
não terei o direito de ser tomada a sério? Eles acham que
eu sou o palhaço da família e sofro duplamente por apanhar
tantos raspanetes e por ainda não conseguir compreender-me
bem a mim própria. Os carinhos superficiais já
não me satisfazem, nem sequer as tais conversas chamadas
sérias. Espero do pai alguma coisa mais, que ele decerto
me poderá dar. Não que tenha inveja da Margot.
Não cubiço a sua inteligência nem a sua beleza. O que
eu queria era o amor do pai, não só como sua filha, mas
como Anne, o ente humano que sou.
Agarro-me ao pai por ser ele o único que me faz conservar
o sentimento da família. Mas ele não compreende
que eu, por vezes, tenha necessidade de abrir-me, de
falar sobre a mãe. O pai não quer falar dos defeitos da
mãe e esquiva-se propositadamente a qualquer conversa
sobre o assunto. E, no entanto, a maneira de ser da mãe
pesa-me no coração. Por vezes não consigo dominar-me,
e faço-lhe ver o seu desprezo, ironia e dureza. Pois, decerto,
a culpa não será sempre minha, não é verdade?
Sou em tudo o contrário da mãe e, por isso, é inevitável
que nos choquemos. Não estou a criticar o seu carácter,
pois isso não me compete. Vejo-a apenas como minha mãe.
E ela não é para mim a mãe que idealizei. Parece que tenho
de ser eu própria a minha mãe. Desprendi-me deles,
sigo o meu próprio caminho. Quem sabe aonde chegarei
um dia? Na minha imaginação vejo o ideal de mulher
e de mãe, mas naquela a que tenho de dar o nome de
mãe nada disso encontro.
Proponho-me constantemente não reparar nos seus
defeitos, ver sòmente as suas qualidades e desenvolver
em mim o que nela procuro. Mas não é fácil, e o pior é
que nem o pai nem a mãe querem ver o que me falta
e é isto que lhes tomo a mal. Será possível que haja pais
capazes de contentarem inteiramente os filhos?
Por vezes penso que Deus quer pôr-me à prova. Tenho
de me aperfeiçoar sòzinha, sem exemplo e sem ajuda, só
assim hei-de ser um dia forte e resistente.
Quem, além de mim, lerá estas coisas? Quem pode
ajudar-me? Necessito de ajuda e de consolo! Sou muitas
vezes fraca e incapaz de ser aquilo que gostava de ser.
Sei-o e tento todos os dias, de novo, melhorar-me.
Nem sempre me tratam da mesma maneira. Um dia
pertenço à classe dos adultos e posso saber tudo, e no dia
seguinte a Anne não passou de um ser inexperiente que
julga ter aprendido alguma coisa nos livros mas que, na
realidade, não sabe coisa de jeito. Ora eu não sou um
bebé nem uma boneca para os divertir. Tenho os meus
ideais, o meu modo de pensar e os meus planos, embora
ainda me falte a capacidade de traduzir tudo isto em palavras.
Ai! tantas, tantas dúvidas que se me levantam quando
estou só, à noite, ou mesmo durante o dia quando estou
encerrada com toda esta gente quejá não posso ver à minha
frente e de que estou farta até não poder mais. Eles nada
compreendem dos meus problemas. Assim, volto sempre
ao meu diário. É ele o meu princípio e o meu fim. A ti,
Kitty, nunca te falta a paciência e prometo-te que hei-de
aguentar. Hei-de vencer a minha dor e seguir o meu
caminho. Só gostava de ter, de vez em quando, um pouco
de sucesso, de ser estimulada e encorajada, por alguém
que me tivesse amor!
Não me condenes! Por favor, compreende que, às
vezes, não posso mais!
Tua Anne.

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