Querida Kitty:
Esperamos a invasão de um dia para outro. Churchill
teve uma pneumonia, mas já está quase bom. Gandhi, o
libertador da Índia, já fez, não sei quantas vezes, a greve
da fome.
A sra. van Daan disse ser fatalista. Mas sabes quem
tem mais medo quando caem as bombas? Claro que é
ela, a D. Petronella!
O Henk trouxe-nos a pastoral dos bispos que foi lida
em todas as igrejas. É grandiosa e incita as pessoas: Não
vos caleis, holandeses! Cada um tem que lutar com as suas
armas pela liberdade do povo, pela pátria e pela religião!
Ajudai, não hesiteis!-Foi assim que falaram. Servirá para
alguma coisa? Aos nossos correligionários com certeza
não serve para nada.
Imagina o que aconteceu. O senhorio, sem avisar o sr.
Koophuis ou o sr. Kraler, vendeu a casa. Uma manhã
apareceu o novo proprietário com um arquitecto.
Queriam ver a casa. Graças a
Deus o sr. Koophuis estava presente e mostrou tudo
aos senhores, menos o anexo.
Disse-lhes que deixara as chaves da porta em casa. Os
senhores não insistiram. Oxalá não voltem para o anexo.
Seria a nossa desgraça.
O pai deu-nos um ficheiro com fichas novas. Serve-nos,
a mim e a Margot, para os livros que já lemos. Registámo-los
não só pelo autor e título mas também com as
nossas observações. Para as palavras estrangeiras e os
ditos arranjei um caderno especial.
Ultimamente dou-me melhor com a mãe. Mas nunca
seremos verdadeiras confidentes uma da outra. A Margot
está mais impertinente do que nunca, e o pai está muito preocupado com qualquer coisa. Mas ele
é e será o melhor de todos!
Novas rações de manteiga e de margarina. Cada um
recebe a sua parte do dia num pratinho. Parece-me que
a distribuição quando está ao cargo dos van Daans não
corre lá com grande honestidade, mas os meus pais estão
fartos de zangas e, por isso, calam-se. É pena. A meu
ver, devíamos pagar-lhes na mesma moeda.
Tua Anne.
Quarta-feira, 20 de Março de 1943
Querida Kitty:
Ontem à noite houve um curto-circuito. E ainda por
cima o barulho infernal dos canhões da defesa. Não sou
capaz de me habituar às bombas e aos aviões. Tenho
medo e quase sempre fujo para a cama do pai. Se calhar
achas-me muito criança, mas só queria que assistisses!
Não ouvimos as nossas próprias palavras, tanto é o barulho
dos canhões. A sra. van Daan, a fatalista, estava quase a
chorar e disse, toda enfiada :
-Acho um horror dispararem tanto.
Não queria isto dizer : tenho muito medo!? De dia a
coisa não me aflige tanto. Gritei como se tivesse febre
e supliquei ao pai que acendesse a vela. Mas ele não
se comoveu e continuámos às escuras. Então começou
o ruido das metralhadoras, que acho pior ainda do que
o dos canhões. A mãe saltou fora da cama e, com desgosto
do pai, acendeu a vela. Ao seu protesto respondeu resolutamente :
-Mas a Anne não é um velho soldado como tu!
E acabou-se! Já te falei dos ataques da sra. van Daan?
Tens que saber tudo o que se passa no anexo. Certo dia
ela ouviu passos pesados no sótão. Pensou que eram ladrões.
Ficou tão cheia de medo que acordou o marido. No mesmo
instante o ruido terminou, o sr. van Daan só conseguiu
ouvir bater o coração da fatalista.
Ai! Putti: (é como ela chama o sr. van Daan) se calhar
roubaram os chouriços e os feijões. E que terão feito ao
Peter?
-Não roubaram o Peter, não te aflijas! E deixa-me
dormir.
Mas isso sim!
Como ela não conseguia adormecer, também o não
deixava a ele.
Algumas noites depois, a família van Daan acordou
com um barulho esquisito. O Peter subiu para o sótão
com a sua lâmpada de mão e quando a acendeu viu
fugir um bando de ratazanas. Agora sabíamos quem eram
os ladrões, e pusemos o Mouchi a dormir no sótão. Os
. hóspedes indesejáveis, pelo menos durante a noite, não
voltaram mais. Mas há poucos dias o Peter teve de ir ao
sótão (eram sete e meia e ainda dia) para buscar alguns
jornais velhos. Ao descer a gente tem de agarrar-se à saída.
Ao pousar a mão ia caindo pela escada abaixo. Uma
ratazana mordeu-o no braço. Quando chegou cá em
baixo-e de que maneira!-tinha o pijama cheio de sangue,
estava branco como cal e mal se aguentava nas pernas.
Não admira, pois ser-se mordido por uma ratazana sem
contar é horrível, e ainda por cima uma mordedura
daquelas... Chega a ser infívelame!
Tua Anne.
Nenhum comentário:
Postar um comentário